Tendo acompanhado e participado da primeira fase do programa de elaboração do Plano Diretor, entidades da Sociedade Civil que subscrevem o presente manifesto, vem apresentar de público à Coordenação do Plano Diretor as seguintes considerações e propostas que visam viabilizar a participação que ora nos é solicitada.
Elas o fazem por se sentirem comprometidas com o objetivo de efetivar o papel transformador e democrático desse Plano, tal como é exigido pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Cidade.
Preocupa-nos em especial a tendência da atual administração de admitir que o novo Plano Diretor 2013-2023 possa ser uma mera revisão do Plano Diretor 2002-2012 e das propostas de sua revisão que foram apresentadas na gestão passada. Propostas que foram repetidamente contestadas pela Sociedade Civil quanto a seu conteúdo e democracia, a ponto de serem invalidadas pelo Judiciário, a partir de firme atuação do Ministério Público.
Essas objeções basearam-se, em primeiro lugar, no fato dessas propostas terem se demonstrado insuficientes para equacionar e resolver os problemas críticos de transportes, habitação, infraestrutura , meio-ambiente e controle do uso do solo. Em segundo lugar basearam-se na forma autoritária com que, cedendo-se a pressões das forças econômicas determinadas em fazer aprovar rapidamente dispositivos de seu exclusivo interesse, evitou-se o efetivo debate público que conferiria ao Plano o caráter participativo, constitucionalmente exigido.
Passados 10 anos de tentativas frustradas para se chegar ao Planejamento Estratégico com soluções convincentes daqueles problemas, não restam dúvidas de que a cidade precisa de um Plano inteiramente novo, cuja competência na sua formulação e democracia na participação dos cidadãos, não possam mais ser contestadas.
Não temos dúvida que esse novo Plano precisa ser logrado a qualquer custo, mesmo que sua elaboração e aprovação consuma tempo e esforços extraordinários necessários para fazê-lo capaz de transformar radicalmente a cidade, tornando-a muito mais eficaz economicamente, socialmente justa e ambientalmente sustentável que é o que interessa a todos os cidadãos.
Para todos os que, de há muito, vêm estudando a cidade tornou-se claro que esse objetivo não pode ser logrado se o processo de produção, apropriação e uso do espaço urbano, hoje dominado pelos interesses do lucro, não for radicalmente alterado em favor de resultados que interessam a toda a sociedade. Em especial às classes trabalhadoras que têm direitos legítimos de reivindicar condições de vida condigna em ambientes urbanos de qualidade.
Sabemos, que esses objetivos não podem ser atingidos dentro da pura lógica do mercado pois sempre haverá parcelas da população e dos usuários da cidade cujo nível de renda não lhes permite instalar-se na cidade, senão em áreas desvalorizadas justamente por não oferecerem condições de uso satisfatórias.
Assim o poder público sempre teve a função inalienável de intervir no processo urbano, seja pela produção de equipamentos e serviços e espaços públicos, seja pela regulação da produção imobiliária e do uso do solo. O que sempre dependeu das condições políticas com que contaram os governos para valorizar a participação da Sociedade Civil na dinâmica urbana e para neutralizar a influência indevida do poder econômico na gestão da cidade
Tornava-se evidente que as promessas de um atendimento substancialmente melhor das reinvindicações populares somente poderia se concretizar se o poder público lograsse instituir um Plano Diretor do desenvolvimento urbano que, com apoio em todas as forças sociais, fosse capaz de recondicionar, política, legal e administrativamente, a ação de todos os agentes urbanos de importância decisiva nas transformações da cidade
Para isso, seria fundamental que o poder público promotor do Plano se comprometesse previamente em mobilizar, sem exclusão, todas as forças e instituições sociais que quisessem participar da elaboração do mesmo. E para tanto oferecer garantias reclamáveis, de que se manteria isento face aos interesses em jogo e promoveria processos de total transparência na condução das decisões-chave do Plano. O que obviamente implicaria em combater, ao invés de admitir, a possibilidade das decisões estratégicas consagradas no Plano serem induzidas por pressão de forças econômicas apenas centradas em benefícios próprios e imediatos
Ora, essa expectativa a nosso ver não está sendo comprovada pelo encaminhamento ora seguido pela Coordenação do Plano ao adotar massivamente as propostas elaboradas na década passada das quais muitas jamais puderam ser completadas e muito menos implementadas ou avaliadas. Ou ainda por centrar sua discussão em práticas “assembleísticas” nas quais, nem se conhece com precisão as propostas em pauta apenas sinalizadas genericamente por discursos orientados pelo PowerPoint, nem se oferece à Sociedade Civil o mínimo de condições – de tempo, informação e reflexão – para apresentar suas dúvidas, criticas e propostas alternativas.
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Assim sendo, vimos apresentar algumas sugestões de método que nos parecem essenciais para efetivar o caráter objetivo e participativo com que se comprometeu a atual Administração
Dessas sugestões as duas primeiras referem-se às condições em que se pretende colher da Sociedade Civil contribuições consistentes à formulação do Plano, tarefa que sempre consideramos impossível de ser cumprida no exíguo prazo programado ( mês de junho), sobretudo tendo-se por base a informação superficial e difusa das propostas formuladas na década anterior.
A primeira sugestão é que inicialmente se elabore e divulgue um texto síntese preliminar, esclarecedor do que a Coordenação dos trabalhos entenda como conteúdo atualizado, válido em 2013, das diferentes proposições surgidas na década anterior, excluídos os conteúdos não justificados ou consistentemente contestados.
Esse texto síntese diria respeito, no mínimo, aos seguintes temas:
– Objetivos Centrais do Plano Diretor;
– Princípios e Estratégias Gerais para a realização dos objetivos propostos;
– Diretrizes e elementos chave de políticas públicas integrantes do Plano e
– Diretrizes de coordenação político institucional exigidas pelo Plano.
As x comprometidas com o objetivo de efetivar o papel transformador e democrático desse Plano, tal como é exigido pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Cidade, mencionadas abrangeriam, em primeiro lugar, as políticas setoriais diretamente dependentes da esfera pública que foram mais insistentemente demandadas pelas recentes manifestações populares. Incluindo portanto:
– Transportes e mobilidade;
– Habitação Popular;
– Qualidade ambiental; e
– sistemas públicos de infraestrutura, notadamente de saneamento básico e drenagem
-Equipamentos sociais de importância essencial como os de Segurança, Educação, Saúde ou Recreação.)
Em segundo lugar, abrangeriam as políticas de caráter urbanístico, tanto as que regulariam a produção imobiliária e o uso do solo por zonas urbanas, como a política de estruturação geral do território urbano, a ser configurada em um plano urbanístico básico de longo prazo, condicionador da ação executiva e normativa de todos os agentes públicos determinantes da estruturação da cidade.
Uma segunda sugestão é que se organizem comissões temáticas para a discussão de cada uma dessas políticas, nas quais se se viabilize um diálogo objetivo da Administração com os setores da Sociedade mais interessados e preparados para tratar de problemas de cada área em função das lutas sociais e alternativas técnicas que vêm sendo desenvolvidas ao longo do tempo. Nessas comissões haveria de se criar condições para o confronto necessário das proposições públicas e dos setores sociais envolvidos, permitindo evitar que as primeiras acabassem predominando por razões do jogo político menor sem que houvesse possibilidade das organizações sociais questionarem sua real viabilidade e eficiência e para os objetivos fixados. Essas Comissões temáticas teriam ainda a função de facilitar a manifestação e compreesão dos conflitos de princípios, interesses e orientações alternativas que não poderiam ser facilmente captados numa assembléia ampla por região, onde cada tema só pudesse contar com um numero reduzido de interlocutores interessados e competentes.
Uma terceira sugestão é que os debates a nível regional fossem organizados com base nos textos síntese e nos relatórios das Comissões temáticas acima propostos, o que aumentaria extraordinariamente o nível de conhecimento e capacidade propositiva dos debates regionalizados.
Caso adotadas essas sugestões, torna-se necessário em primeiro lugar que a coleta de críticas e propostas da Sociedade, irrealisticamente prevista para mês de julho, fosse reprogramadas a fim de serem criadas as condições necessárias para que essas contribuições sejam formuladas da forma minimamente fundamentada e precisa, indispensável a seu efetivo aproveitamento.
Na etapa subseqüente prevista pela Coordenação do Plano, seriam examinadas as contribuições recebidas da Sociedade Civil e elaborada uma versão devolutiva incorporando todas as contribuições julgadas consistentes e fazendo as alterações necessárias para que o Plano alterado mantivesse sua coerência e eficácia. Como para essa complexa atividade foi previsto apenas um mês (julho) será obviamente necessária uma reprogramação.
Na próxima etapa seria promovida uma discussão final na Sociedade que permita à mesma avaliar até que ponto suas demandas e propostas foram efetivamente contempladas no texto devolutivo do Plano. Esse debate será fundamental para a formulação do projeto de lei do Plano Diretor que o Executivo enviará à Câmara Municipal e para subsidiar a apreciação dos Vereadores da vontade popular manifesta na livre discussão.
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Aceitas as perspectivas abertas com essas propostas, torna-se obviamente necessária uma revisão da programação dos trabalhos de formulação do Plano inicialmente proposto pela atual Administração.
Temos confiança que a reprogramação necessária será feita em nome dos princípios de eficácia e democracia que marcaram a gestão municipal recentemente iniciada. Para tanto,porem parece-nos indispensável que o prefeito Haddad tenha um empenho especial para assegurar que o Plano Diretor se faça de forma criteriosa, independente e legitimada., com tempo e condições indispensáveis à sua natureza e qualidade.
Ninguém duvida que para isso, será preciso conciliar sua elaboração com o enfrentamento imediato de problemas conjunturais inadiáveis que não podem esperar a conclusão do Plano Diretor, desde que não possam comprometer o conteúdo e implementação do mesmo.
Nada porém justificaria que, em proveito de ações imediatistas e atomizadas, se deixe de alocar tempo e energia suficientes para a elaboração do Plano Diretor que mude a história da cidade no sentidodos objetivos pelos quais o conjunto dos cidadãos vem sonhando e lutando há décadas e que tem de se concretizar de forma definitiva nos próximos 20 ou 30 anos.
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Complementarmente gostaríamos de apresentar algumas considerações sobre as políticas públicas que deverão ser sintetizadas e postas em discussão junto à coletividade
Cabe sublinhar desde logo a importância dos objetivos, conteúdos e resultados que a Coordenação conseguir apontar como válidos para cada uma das políticas públicas mencionadas, sejam elas remanescentes dos planos de 2002/04 e suas revisões, sejam as esboçadas mais recentemente, ante o novo quadro de agravamento dos problemas urbanos ocorrido na década passada.
O importante é que essas políticas sejam sintetizadas de forma tão simples , objetiva e dIdática que permitam à toda a sociedade avaliar se estão ou não no caminho da solução efetiva dos impasses urbanos que vitimam os moradores, usuários e contribuintes da cidade.
É obvio que não seria suficiente se elas arrolassem apenas os programas específicos que o município se dispusesse a desenvolver no limite de suas possibilidades e recursos imediatos, no tempo de uma gestão.
O papel do prefeito nesse tipo de Plano é antes de tudo o de convocar e articular todas as forças da sociedade e todo o aparato público para instituir uma Política de Estado duradoura que realmente desse resposta possível a todas as demandas da sociedade.
Mesmo que isso implicasse em redefinir muitas das relações que hoje vinculam os integrantes do processo urbano. Ou em alterar substancialmente as funções do Estado na cidade. Ou em criar um novo aparato de planejamento e gestão que permitisse aos cidadãos e suas organizações fiscalizar continuamente a ação pública
Mesmo quando tenha de criar, através do Plano para todos os governos que se sucederem no período de validade do Plano, a obrigação de seguir as mesmas políticas estratégicas de longo prazo neste fixada, aplicando sua autoridade apenas sobre aqueles programas e projetos que seriam implementados em sua gestão.
Nessa perspectiva, mais importante que anunciar programas e projetos que o município possa decidir imediatamente, será esclarecer, para cada política : porque implementá-la, com que objetivos precisos, com que resultados e custos demonstráveis, com que distribuição de responsabilidades ou com que penalidades para os omissos.
A cidadania consciente não se pode abater ante a constatação que o planejamento recente esteve muito distante desses princípios e conteúdos. Nem que surpreendentemente estejamos hoje diante da possibilidade de reeditarmos, para os próximos dez anos, os procedimentos equivocados ou tendenciosos desse período.
Nossa esperança reside na certeza de que o comando político do atual processo de Planejamento é perfeitamente capaz de, utilizando os amplos recursos tecnológicos hoje disponíveis, conferir ao Plano Diretor em elaboração a consistência técnica, a objetividade, a eficácia e a transparência necessárias para recuperar a confiança das forças sociais mais progressistas e atuantes. Inclusive as que, não se satisfazendo com as restritas oportunidades de expressão popular ora oferecidas pelo poder público preferem manifestar espontânea nas ruas as necessidades e demandas que não admitem sejam ignoradas.
Luiz Carlos Costa é membro titular do Conselho Municipal de desenvolvimento Urbano, Professor Doutor aposentado de Planejamento Urbano da FAUUSP e Diretor do Movimento Defenda São Paulo.